"Doping estragou a minha vida"
Fernando Mendes escreve biografia e descreve uso generalizado de dopantes no futebol.
Fernando Mendes: "Os que conhecem o mundo do futebol sabem a quem são dirigidas estas palavras e percebem que não são generalizadas"
Aparece de chinelos e calças de ganga fashion. Está mais velho, mas com o mesmo ar insolente com que passeava nos estádios e nas conferências de imprensa. "Sempre gostei de ser diferente".
Fernando Mendes escreveu, de facto, uma biografia diferente do habitual: confessa o uso do doping nos melhores anos da carreira e só não diz em que clubes para evitar processos judiciais. Iliba o FC Porto, mas recusa-se a esclarecer se jogou dopado no Belenenses e no Boavista. O livro descreve uma realidade chocante, de seringas nos balneários e juniores usados como cobaias. Chama-se "Jogo Sujo".
Fernando Mendes tem 42 anos e prepara-se no Olímpico do Montijo para ser treinador. Na semana passada falou ao Expresso.
Porquê escrever este livro agora?Antes de acabar a carreira já tinha a ideia de escrever um livro sobre a minha vida profissional e relatar situações menos conhecidas, mas muito faladas. Calhou ser agora.
Os casos que descreve são crimes que já prescreveram. Fez de propósito para não arranjar problemas legais?A primeira versão do livro era mais dura. Escrevi os nomes dos envolvidos, dos clubes, tudo. Mas decidi recuar porque iria passar a vida inteira nos tribunais. Não escrevi o livro de ânimo leve, nem para ganhar dinheiro.
Qual é o objectivo então?O jogador é tratado como uma máquina. Éramos carne para canhão. É como se tivéssemos uma faca apontada: "Ou fazes isto ou não jogas". São histórias que merecem ser contadas.
Ao decidir não escrever o nome das pessoas e dos clubes envolvidos está a lançar suspeitas sobre todos.Não quero atingir ninguém, mas alertar as pessoas para a realidade do doping. Os que conhecem o mundo do futebol sabem a quem são dirigidas estas palavras e percebem que não são generalizadas.
Com que idade se dopou pela primeira vez?Com vinte e poucos anos. O início da minha carreira foi muito transparente. Quando se tornou maior o nível de exigência e mais altos foram sendo os objectivos do clube, começaram a surgir algumas situações duvidosas.
No livro, conta que os jogadores entravam no balneário "como galinhas" a perguntar "onde estava o milho" e que iam direitos ao massagista para serem dopados. De que clube está a falar?As pessoas ligadas ao futebol sabem de que clube se trata.
Falou com algum deles sobre o livro que ia escrever?Não. Ninguém sabia de nada.
Como acha que vão reagir quando lerem o livro?Alguns irão reagir mal. Estou-me a borrifar.
Depreende-se que passou os melhores anos da sua carreira dopado.Não, isso não era sempre. Não me dopei a vida inteira.
A partir dos "vinte e tal anos", houve três clubes onde teve "grandes épocas": Porto, Boavista e Belenenses. Dopou-se no Porto?Não.
E no Boavista ou no Belenenses?Não respondo.
Antes destes clubes nunca se tinha dopado?Que eu soubesse não. Quando chegava a um clube havia muitos medicamentos e nem sempre era informado do que andava a tomar. Havia clubes que nos davam cápsulas sem qualquer nomenclatura ou a marca do medicamento. Hoje o controlo é mais apertado e os clubes não arriscam tanto.
Quando é que se dopava?No próprio dia do jogo.
No livro fala muito num massagista que dava as doses aos jogadores...Sim. Ele gabava-se que tinha uma pessoa controlada no Centro Nacional Anti-Doping e sabia sempre com antecedência em que jogos eram feitos os controlos. Dava-nos o doping, dizendo que dava mais força no campo. E era verdade.
Relata o uso de juniores como cobaias para as dosagens. Não o chocava ver miúdos a serem usados assim?Para quem está neste meio há muitos anos, há situações que nos passam ao lado. Não íamos fazer nada, nem denunciar a situação ao treinador ou ao presidente. Era impossível. Eu estava ali de passagem, não tinha nada a ver com aquilo. Mas foi uma das situações mais complicadas a que assisti.
O uso de doping era generalizado?Falava-se muito disso entre os jogadores. Acontecia mais nos clubes pequenos e intermédios, que não queriam descer de divisão ou lutavam por um lugar na UEFA. Talvez só os grandes estivessem fora deste esquema.
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Contou à sua mulher que se dopava?Não era preciso, ela sabia. Uma pessoa que me conhecia há tantos anos sabia que eu não fazia mal a ninguém. E naqueles dias ficava completamente alterado. Nem com a minha filha mais velha queria falar. Estraguei a minha vida particular com o doping. Era fácil que ela percebesse, até porque o cheiro do meu corpo quando estava dopado era mau. A droga saía por todos os poros.
E diz que não se arrepende.A bola deu-me coisas boas. Passei pelos cinco clubes campeões nacionais, mas não ganhei fortunas. Tenho de trabalhar para viver.
Nem mesmo depois de ter sido excluído pelo seleccionador para um campeonato da Europa, como refere no livro, por estar esgotado depois de uma época com doping?Não. Porque a minha pré-convocatória para essa fase final abriu-me portas para ingressar num grande clube.
Nota hoje que o doping lhe tenha causado algum dano físico?Não, até porque não tomei assim tantas vezes.
Era generalizada a procura de acompanhantes por futebolistas durante os estágios?Não. Presenciei no máximo umas três a quatro vezes episódios como esses em estágios da selecção. E eram poucos os futebolistas que o faziam. Eu não alinhava. Sempre fumei quando jogava à bola, fiz muita porcaria, mas não sentia necessidade de ter mulheres, profissionais ou não, às escondidas. Mas esses jogadores não jogavam pior no dia seguinte.
Pequenos excertos do livro Jogo Sujo
DOPING"Tomei doping de todas as vezes que me foi dado. E quem recusasse tomar alguma coisa, provavelmente ficaria sem jogar. Nunca vi um único colega insurgir-se contra esta situação"
MILHO NO BALNEÁRIO"Havia jogos em que entrávamos no balneário e perguntávamos: onde está o milho? Aparecia o massagista com uma bandeja recheada de seringas para dar a cada um. Parecíamos galinhas de volta do prato, à espera da vez"
O SEGREDO"Tenho todo o prazer em explicar-te qual era o segredo: uma pequena vacina, do tamanho de uma meia unha, chamada Pervitin. Espetavam-nos aquilo no braço e dava para correr e saltar quatro jogos de seguida"
COBAIAS"Em certos treinos víamos um ou dois juniores que apareciam para treinar. Estavam ali para servirem de cobaias as novas dosagens"
BENFICA"Assinei pelo Benfica na casa da Leonor Pinhão e do João Botelho"
FILHA"Eu chegava a casa com tremendas ressacas de mau humor e nem sequer tinha paciência para brincar com ela"
SELECÇÃO NACIONAL"Durante os estágios era fácil subir com uma mulher desconhecida para o quarto e ter uma boa noite de sexo"
Antigos colegas negam uso de drogas
Fernando Mendes diz que todos sabiam, mas ninguém se insurgia. Colegas falam de busca de protagonismo pelo antigo internacional.
Ao longo de 175 páginas, Fernando Mendes afirma sem rebuços que nunca viu um colega insurgir-se contra o uso de doping, invariavelmente fornecido pelos massagistas de alguns clubes por onde passou. Apesar da franqueza com que assume a utilização de substâncias dopantes, nenhum dos seus antigos colegas de equipa e da selecção contactados pelo Expresso confessa ter alguma vez consumido ou visto alguém utilizar doping para melhorar o rendimento.
"Cada um que fique com a sua consciência", atira João Vieira Pinto, seu companheiro no Benfica, Boavista e selecção. "Nunca precisei de tomar nada para vencer. É uma das coisas de que mais me orgulho na vida", refere, assumindo-se um crítico severo do uso de doping. Colega de Mendes no Belenenses, Taira mostra-se surpreso com a atitude do autor de "Jogo Sujo", acusando-o de querer protagonismo. "Nunca usei ou vi colegas a consumir doping e duvido que tal tenha sucedido no Belenenses", sustenta Taira. "Fomos sujeitos a vários controlos e não houve casos positivos", acrescenta. Tulipa, que se cruzou com Fernando Mendes em épocas diferentes, também nega ter assistido a algo suspeito.
Tais situações são ainda "novidade" para os então presidentes do Boavista e do Belenenses, dois dos clubes indiciados na autobiografia. "Não tenho conhecimento de tal", sustenta Valentim Loureiro, que remete a eventual responsabilidade destes actos para o jogador e para os médicos ou massagistas de então. "Isto é uma parvoíce", frisa José António Matias, alertando que o "jogador devia ter denunciado tais práticas era na altura".
Segundo Luís Horta, director do Conselho Nacional Anti-Dopagem (CNAD), o número de casos positivos no futebol tem diminuído substancialmente em relação aos anos 90 - rondavam os 2% das amostras recolhidas contra os menos de 1% nesta década. Em 2008, houve apenas 3 casos, equivalentes a 0,3% das análises. "Hoje, os controlos são muito diferentes, realizados sem aviso prévio, em competição e fora dela, à urina e às vezes ao sangue", diz Luís Horta, que não tem dúvidas que "é impossível um clube ou atleta saber que será alvo de controlo".
Os clubes são sorteados por sistema informático e os jogadores sorteados 15 minutos antes do final do jogo. Este sistema foi montado no final de 90, após a PJ, em colaboração com o CNAD, ter detectado que um funcionário deste organismo e um médico com ligações a clubes "vendiam substâncias dopantes e informação de controlos", o que levou à prisão dos dois implicados. Isabel Paulo
Texto publicado na edição do Expresso de 27 de Junho de 2009
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